Momentos importantes que marcaram o país são repletos de personagens pitorescos e controvertidos. Curiosamente, dois deles pertencem ao reino animal
A história do Brasil é repleta de personagens pitorescos e
controvertidos, nos quais mitos e realidades se misturam para desafiar a
compreensão de pesquisadores, estudantes e leitores da atualidade.
Curiosamente, dois deles pertencem ao reino animal. São cavalos que
participaram de momentos decisivos na construção do país – a
Independência, em 1822, e a Proclamação da República, em 1889.
A mais conhecida cena da Independência é o quadro “O Brado do
Ipiranga”, do pintor paraibano Pedro Américo. Nele, o então príncipe
regente D. Pedro, futuro imperador Pedro I, aparece no alto de uma
colina, de espada em punho e montado em fogoso alazão. Na imagem
oficial, seria dessa maneira que o herdeiro da coroa portuguesa teria
pronunciado a célebre frase “Independência ou Morte”, marca do
rompimento definitivo entre a colônia e sua antiga metrópole encenada no
final da tarde de Sete de Setembro de 1822.
Depoimentos da época, no entanto, desmentem essa visão épica. Nas
suas memórias, escritas anos mais tarde, o coronel Manuel Marcondes de
Oliveira Melo, subcomandante da guarda de honra e futuro Barão de
Pindamonhangaba, se refere ao animal como uma “baia gateada”. Outra
testemunha, o padre mineiro Belchior Pinheiro de Oliveira, cita uma
“bela besta baia”. Ou seja, uma égua ou mula de carga sem nenhum charme,
porém forte e confiável. Era esta a forma correta e segura de subir a
Serra do Mar naquela época de caminhos íngremes, enlameados e
esburacados.
O mesmo coronel Marcondes também confirma que, na hora do famoso
Grito do Ipiranga, D. Pedro enfrentava um constrangedor problema
intestinal. Em outras palavras, estava com dor de barriga. A causa dos
distúrbios é desconhecida. Acredita-se que tenha sido algum alimento mal
conservado ingerido no dia anterior em Santos, no litoral paulista, ou a
água contaminada das bicas e chafarizes que abasteciam as tropas de
mula na Serra do Mar. Em suas memórias, Marcondes usou um eufemismo para
descrever a situação do príncipe. Segundo ele, a intervalos regulares
D. Pedro se via obrigado a apear do animal que o transportava para
“prover-se” no denso matagal que cobria as margens da estrada.
Foi, portanto, como um simples tropeiro, coberto pela lama e a poeira
do caminho, às voltas com as dificuldades naturais do corpo e de seu
tempo, que D. Pedro proclamou a Independência do Brasil. A cena real é
bucólica e prosaica, mais brasileira e menos épica do que a retratada no
quadro de Pedro Américo. E, ainda assim, importantíssima. Ela marca o
início da história do Brasil como nação independente.
O segundo cavalo importante da história brasileira também é
personagem de um quadro famoso, de autoria do pintor Henrique
Bernardelli, que celebra a Proclamação da República em Quinze de
Novembro de 1889. E também nesse caso há controvérsia em torno do
personagem equino.
Nas horas que antecederam a queda da monarquia brasileira, o marechal
alagoano Manoel Deodoro da Fonseca estava gravemente enfermo. Passava o
tempo todo na cama. Ao visitá-lo, o advogado Francisco Glicério, de
Campinas, interior de São Paulo, ficou impressionado com seu aspecto ao
vê-lo às voltas com uma crise de dispneia, falta crônica de ar produzida
por arteriosclerose. Atirado sobre o sofá, envolto em um roupão, o
marechal sequer reunia condições para vestir a farda. O peito arfava e
ele mal conseguia falar.
O estado de saúde de Deodoro espalhou o pânico entre as lideranças
republicanas. Temia-se que morresse a qualquer momento. Sem o marechal,
revolução não teria qualquer chance de sucesso. Naquele momento, era ele
o único chefe militar com autoridade suficiente para erguer a espada
contra o Império.
O dia Quinze de Novembro estava amanhecendo quando Deodoro recebeu a
notícia de que, mesmo sem ele, as tropas do exército haviam se rebelado
contra o governo e marchavam do bairro de São Cristóvão para o centro do
Rio de Janeiro. Eram comandadas pelo tenente-coronel João da Silva
Telles, tendo ao lado o tenente coronel e ídolo da mocidade militar
Benjamin Constant Botelho de Magalhães.
Fraco e cambaleante, Deodoro vestiu a farda, pediu que colocassem o
selim de sua montaria dentro de um saco e tomou uma charrete em
companhia do alferes Augusto Cincinato de Araújo, seu primo, para ir se
encontrar com as tropas do exército. Na Rua Senador Eusébio, altura do
Gasômetro, viu as forças sublevadas que vinham na direção contrária.
Como ainda se sentia muito debilitado, continuou de charrete o restante
da jornada.
Ao chegar próximo do Campo de Santana (atual Praça da República, em
frente à estação da Central do Brasil), o marechal pediu para montar a
cavalo, apesar dos protestos dos oficiais, temerosos de que o velho
comandante não tivesse forças para se manter sobre o animal. Por
precaução, o alferes Eduardo Barbosa cedeu-lhe o cavalo baio número 6,
considerado o menos fogoso na tropa do Primeiro Regimento de Cavalaria. E
foi com esse cavalo que Deodoro depôs o imperador Pedro II.
Herói involuntário de uma escolha casual, o pacato animal seria
também o primeiro beneficiário da república brasileira. Aposentado do
serviço militar por serviços relevantes prestrados ao novo regime,
passaria o resto dos seus dias sem fazer nada, vivendo confortavelmente
no estábulo do seu quartel no Rio de Janeiro. Anos mais tarde, ao
recordar o episódio enquanto posava para o quadro de Henrique
Bernardelli em que aparece sobre o animal, de quepe na mão, proclamando a
República, Deodoro diria:
– Vejam os senhores, quem lucrou no meio de tudo aquilo foi o cavalo!
Laurentino Gomes é escritor e jornalista, autor dos livros 1808, sobre a fuga da família real portuguesa para o Rio de Janeiro; 1822, sobre a Independência do Brasil; e 1889, sobre a Proclamação da República.
Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/01/09/opinion/1389266670_104355.html
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